Não é a primeira vez que escrevo sobre a minha mãe e não será a última. Tem 82 anos e viveu os últimos 35 numa relação abusiva. A violência, sabemos todos, não se manifesta só fisicamente e a pessoa com quem escolheu fazer a sua vida é tudo o que se espera de quem é infeliz e cobarde.
Como tinha 15 anos quando entrou em casa, não tive noção. Não no imediato. Nem sabia o que era ou quem era, excepto que era o extremo oposto do meu pai. Em comum tínhamos apenas o amor pelo Sporting, mas até aí somos o sol e a lua. O ódio pelo vizinho importa-lhe mais que o amor pelo verde e branco. É evidente que era impossível substituir o meu pai. Ainda mais o meu que era especial. E próximos de mim eram o meu avô Mário e o Humberto. Ainda assim podia ter sido bom. Não foi.
Cada um é como é e se há pessoas que pensam e habitam universos diferentes, este é um excelente exemplo. Nunca nos entendemos. Lá por casa continuou, sem nunca alterar a agressividade, a forma desagradável de estar, a necessidade absoluta de conflito e a minha mãe habituou-se. Tudo suportou, só pelo medo de estar sozinha. Sozinha estava ela todos estes anos, mas é muito difícil explicar isto a quem desenvolve uma empatia com o seu abusador. Há certamente milhões de histórias como esta e muitas dramáticas. Esta não é, é só triste.
Por alguma razão que desconheço, o homem tinha o hábito de dizer que gostava muito de mim. Sempre disse que assim seria até deixar de ser - La Palisse no seu melhor - e não me enganei. Reconheço, e também isso é triste, que conviveu mais comigo do que com os seus próprios filhos, filhos esses que nunca tiveram um pai.
Passei temporadas de muitos meses sem falar com ele, tão absurdo e agressivo era e são muitos os episódios deploráveis em que me vi envolvido. Desde logo a forma pueril como bebia. Era um bêbado económico, bastava um copo. Ignorei-o sempre que pude, mas foram muitas as vezes que chorei de vergonha. Representava o absoluto avesso do que sou, um machista da velha guarda, racista, irracional e estúpido, profundamente estúpido. E ainda por cima, como muito bem brincou o Bruno Nogueira, além de estúpido é burro e nunca fez absolutamente nada que me servisse de modelo. Uma determinada noite viu-me passar uma camisa e não se calou com o facto de naquela pequena cabeça estar a cumprir um papel que era da mulher. Foi só mais um momento em que o deixei a falar sozinho.
Mau mesmo era a agressividade. Foram muitos os episódios, mas o mais grave aconteceu no último mês da gravidez de risco da A., quando, por uma estúpida discussão política, se dirigiu a mim de punhos no ar. Foi o pior, embora sejam incontáveis os jantares, natais e outros tantos eventos que arruinou com a necessidade absoluta de mostrar a sua raiva.
A minha mãe, assistiu a tudo e esqueceu-se. É, aliás, capaz de me chamar mentiroso e culpar qualquer um por ouvir o que não gosta. Menos o seu companheiro.
Reparem, não sou um anjo. E infelizmente deixei que a forma de estar deste homem me afectasse. Hoje, quando mal consigo falar com a minha mãe, sou bruto como ele tantas vezes foi. Sofro imenso por isso. A ironia é que quem devia desde sempre estar do meu lado, só quando eu reajo repara. Na mesma medida em que sempre ignorou o que do outro lado vinha.
O episódio que encerrou a relação que mantive com aquele homem aconteceu há seis anos. Lembro-me bem, estava num trabalho de fotografia, a mais de 100 km de casa e a minha mãe, que estava naquela tarde com os meus filhos de três anos, caiu. No chão, sem se conseguir mexer, perante o pânico dos miúdos, teve de pedir o telemóvel ao seu companheiro para ligar à A., também ela a trabalhar, e pedir ajuda. A ajuda que aquela besta não deu. Foi a A. que fechou a loja onde trabalhava, chamou a ambulância, foi a A. que a acompanhou ao hospital, tiveram de ser os meus sogros, por sorte de férias a sul, a tomar conta dos miúdos.
Partiu cinco costelas e, como é apanágio dos serviços de saúde por aqui, mandaram-na para casa com uma receita de… paracetamol. Escusado será dizer que gritava de dores. E que faz o seu companheiro? Diz que se ela continuar a gritar e não o deixar dormir, faz as malas e vai embora. Disse alto e bom som quando lá estive no dia seguinte e só um pedido lhe fiz. Que se acalmasse e, se a minha mãe assim continuasse, pegar no telefone e avisar-me. Claro que não fez nada disso. Só no dia seguinte pela manhã a minha mãe, ele nunca, me liga e pede para a levar novamente ao hospital. Fui buscá-la e ao sair ainda me disse para a levar ao hospital público, o tal de onde tinha saído com Ben U Ron.
O hospital privado era a 1 km e foi obviamente onde a levei. Não a ia sujeitar a mais oito ou nove horas de inferno. Foi imediatamente atendida, medicada e fez novos exames. Passaram umas horas, chorava de dores e deram-lhe nova medicação. Conto este pormenor pois foi neste momento que começou a desfalecer e veio de imediato uma equipa de enfermeiros e médicos que a levaram para uma sala para a reanimar. Ora é neste exacto momento que entra o tal companheiro, aos berros, exaltado, o mesmo homem que não tinha levado a mulher ao hospital ao vê-la gritar de dores e, quando eu estava a falar com a médica e a tentar perceber o sucedido e se a minha mãe ia ficar entre nós, manda-me calar e diz que só quer saber se a mulher está a ser bem tratada. Mal ouviu a resposta da médica, virou as costas e saiu, sem ver a mulher e, na verdade, sem saber nada do que estava a acontecer.
Jurei a mim mesmo que era o fim, que não voltava a falar com ele. Suportei tudo durante décadas, até a forma como chutou brinquedos dos meus filhos e disse que não os queria na sua casa, mas foi o momento final. Acabou. Transbordou. Não havia retorno.
Contei tudo à minha mãe que esteve dois dias internada, disse-lhe a decisão irreversível que tinha tomado. Quando regressou a casa, esqueceu tudo. Tudo. Passados quinze dias, tentou novamente impor-me a presença do seu companheiro, pois… ele tinha saudades minhas.
Os últimos anos foram uma tristeza. Uma repetição destas tentativas da minha mãe e a minha recusa violenta. Hoje o homem está num lar, que por sinal arranjei eu e a minha irmã, e ainda assim chama-me mentiroso, nega todos os tristes episódios, santifica-o. Prefere, literalmente, estar com ele do que com os netos, com o filho ou a nora. Também ela, agora, uma inimiga.
Não sei quantas vezes repeti a minha mãe. A minha mãe. Só posso dizer que tenho muitas saudades dela. Da minha mãe. Que mora a 200 metros, mas mais valia morar no outro lado do mundo. A minha mãe.
Lamento muito pela tua experiência enquanto filho. Deve ser das coisas mais tristes sentirmos que a nossa mãe gosta mais de alguém que abusa dela do que dos seus próprios filhos. Um grande abraço e que possas ainda vir a recuperar a tua mãe
Ah, sobre isso já sei o que me espera e sei que não tem solução. Isto é quase expiação em directo. Sem dramatismo, que provavelmente o texto não transmite.