As relações familiares são difíceis. A idade ainda as torna mais complicadas, a tolerância diminui e o silêncio também. Tantas são as histórias que podia contar, tão marcantes foram em outros tantos momentos da vida. Mas não há como o presente e o presente é a minha mãe. A minha corajosa mãe, que esteve ao lado do meu pai nos seus momentos de agonia, que me sufocou nos anos a seguir e que, convenhamos, não teve muita sorte na vida. Não sabe estar sozinha, não aprendeu e não quis.
Poucos anos depois da morte do meu pai juntou-se a outro homem e, uma vez mais, não teve sorte. Era o oposto absoluto do meu pai, casmurro, estúpido, teimoso e, durante grande parte da minha vida, bêbado. Um triste bêbado, a quem bastavam dois copos para ampliar as suas já pobres características pessoais.
Por razões que agora nada importam, e ao fim de trinta anos, disse chega e finalmente cortei com a pessoa que a minha mãe fazia passar por meu pai sem que eu soubesse. Até sinto arrepios de nisso pensar. Lembro-me sempre de Better Man e como na perfeição encaixa na minha mãe. Deve encaixar em muitas, mas esta história é sobre ela e foi sempre ela que me importou.
“Waitin', watchin' the clock, it's four o'clock, it's got to stop
Tell him, take no more, she practices her speech
As he opens the door, she rolls over...
Pretends to sleep, as he looks her over
She lies and says she's in love with him, can't find a better man...”
Quando vim viver para o Algarve, a minha mãe veio também. Só que a cabeça ficou igual e a única coisa que se alterou foi o sítio. Em tudo o resto reproduziu quase a papel químico a vida que tinha, com o empurrão necessário do homem na vida dela.
Todos estes pormenores para chegar aqui. A conversa que comigo ontem teve. Nunca me perdoou a relação que cortei com o meu padrasto, sobretudo nunca respeitou a fronteira que lhe impus, tão simples como “faz a tua vida com ele, mas não me imponhas a sua presença”.
Tudo piorou desde esse momento há seis anos e tornou-se impossível o convívio e até estar na mesma sala. Tudo sempre por causa do tal pedido que lhe fiz, o respeito por ele, chamou-me besta, mentiroso, disse-me na cara que ele nada tinha feito que justificasse a distância que impus, que não era grave. Mas era. Foram trinta anos de agressividade, de indisposição, de um ódio permanente, de isolamento e, por fim, um profundo e maldoso desrespeito. Por mim, pelos meus filhos, sobretudo por ela, a minha mãe.
E o que me diz ela na tal conversa? “Tu não és um homem feliz!” Podia ser apenas um dislate, mas não. É o reflexo absoluto da incapacidade que tem de assumir as suas próprias responsabilidades. Aos 81 anos não vai mudar. Nem eu aos 51. Enche-me de tristeza, mas tenho feito os possíveis por recuperar o mínimo da nossa já muito pobre relação. Para ser franco, já não sacrifico o meu bem estar e da minha família por quem não quer saber. Nem pela minha mãe. Voltei a dizer-lhe, pela enésima vez, que as palavras valem muito pouco e gostar muito nada significa sem os actos correspondentes.
Sei bem o que vou sofrer quando partir e sei que vou sofrer ainda mais por não conseguir aceitar a realidade que me quer impor. Mas é assim a vida e há um momento em que estar bem é melhor que o conflito permanente.
Ninguém me perguntou, mas eu sou feliz. Acho que até muito. Tenho uma mulher que adoro, dois filhos maravilhosos, a fotografia sai-me da alma, ensinar é quase uma segunda pela. Podia ser melhor? Claro. Mas é bem difícil.
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