Os miúdos às vezes perguntam-me o que acho que devem fazer quando acabam o 12º ano. A todos respondo que devem abrir horizontes e que a universidade serve, em primeiro lugar, para isso mesmo. Para conhecer gente nova, diferente, vinda de outros lugares, com outras experiências e, mais importante de tudo, ganharem a noção e o gosto por aprender. Não o digo com inocência, antes por saber que cada um segue um caminho e espero, espero sempre, que o deles seja melhor que o meu.
A faculdade foi um misto de tudo isto. Não saí de Lisboa, por isso não foi grande desvio. Mas conheci gente nova. Gente que na verdade não gostei e que, no fim, não era assim tão diferente. Fiz amigos, poucos, mas alguns para a vida, como o meu amigo C. A M. também lá estava e a A. manteve-se ao meu lado. Não era preciso mais nada. Desde miúdo que sofri por ser gordo e quando deixei de ser não baixei a guarda por causa disso. Chamavam-me arrogante, superior e, sabem o que digo, até era. Se não conseguiam passar as defesas que me ajudaram a criar, é porque não valiam muito.
O início foi difícil pelos horários. No mais descobri que vinha bem preparado e isso permitiu-me começar com excelentes notas. Naquele primeiro ano ainda as competências sociais não eram fundamentais para nos safarmos, por isso… safei-me. Entrei em Arqueologia - o Indy explica muito - cheio de sonhos. Conforme o ano foi avançando desabaram uns atrás dos outros. Aquele mundo não era para mim. Não pelo trabalho ou falta de capacidade, mas pela necessidade absoluta de dar música aos professores para obter favores, algo que nunca fui capaz de fazer. Não culpo ninguém, constato. E reparo que quem tão bem tocava os seus instrumentos nem o fazia de forma deliberada, era algo inato e, acredito, em muitos casos sem malícia.
Obviamente não servia. Até hoje nunca consegui um trabalho por favores e até é algo que me orgulho. Não sei se devia. O segundo ano foi decisivo para abandonar o curso e sair da variante de Arqueologia. Ao menos em História podia ser quem sou.
Vou tentar não saltar etapas. O primeiro ano foi em muitos aspectos bom e a relação com a A. ainda melhor. De tempo a tempo agarrava nela e íamos passear à Arrábida ou a Sesimbra. Íamos fazer bodyboard à Costa e namorámos. Muito. Só por isso já tudo valia a pena.
O curso em si somava desilusões. Aprendi imenso com os bons professores. Adorei História Pré-Clássica e Metodologia da História. Neste caso por ter recusado entrar no jogo do resto da turma e culpar a professora por falhas próprias. Ouvia a crítica e melhorava, não estava ali para fazer amigos. Pré-História foi horrível. Um homem brilhante, excelente investigador, péssimo professor. Adormecia nas aulas. Literalmente. Era um tédio insuportável. E fazia testes para copiar e eu nunca, mas nunca, estudei para professores assim. Arqueologia até foi divertido, mas escovinhas e desenho “criativo” também não eram o meu forte. O professor de História Clássica era outro desastre. O único pormenor que me lembro de facto foi o dia do exame oral. Estava tudo a fugir, cheio de medo do exame e eu ofereci-me para ser o primeiro. Estou na sala só com o professor e aparece do tecto um lagarto enorme, que ficou o tempo todo a descansar por cima do enorme quadro de giz. As perguntas? Não faço ideia. O lagarto era impressionante.
No segundo ano estava mais à vontade. A faculdade tinha um sistema absurdo de inscrições e quase toda a gente madrugava, um hábito tão horrivelmente português, para chegar primeiro e escolher os professores que queriam. Por mim era excelente, o critério que usavam era o que mais facilitava e, por isso, tinha os bons professores sempre com vagas. No terceiro ano, e para não voltar ao tema, a minha matrícula já ia pré-preenchida, sempre com o critério “não vou para onde os outros vão”. É a minha natureza.
Esse foi o ano em que desisti das cadeiras de arqueologia. Percebi que estava a perder o meu tempo. Foi a única vez que deixei cadeiras por fazer. O meu distanciamento para o curso aumentou. Era tudo desinteressante e aprendi, juro, muito pouco. Continuava o mesmo de sempre. Se não me cativam, não têm o meu tempo. E ali era mesmo uma arte perdida. A história que fica: uma daquelas professoras que só ali estava por ser filha de alguém importante, gostava pouco de trabalhar e, chegado o exame, deu um limite de dez linhas por resposta. Cumpri à risca. Com a letra mais pequena e difícil de ler que consegui. Meti o Rossio na Betesga. Tive 16. Duvido que tenha lido o exame.
Por esta altura a depressão já se tinha instalado. O meu pai morreu de cancro quando tinha 11 anos, perdi grande parte da minha família na década seguinte, a minha mãe era (ainda é) hiper-protectora, com a mania das doenças e, finalmente, a hipocondria apanhou-me. E da mais absurda maneira. Creio que muitos de vós conhecem aquele mito urbano da congestão. De morrer de súbito num mergulho, por comer um gelado durante a digestão ou beber água demasiado fria. Não existe, mas persiste. E eu caí. Sentia-me mal, tinha ataques de pânico, cheguei a ter medo de sair à rua quando chovia. Não julguem que não sei ou sabia identificar o ridículo, mas o pânico não desaparecia por isso. Bebia cerveja natural, fui ao hospital mais vezes que o desejável, tudo estava a desmoronar-se. Menos a A. A A. esteve sempre comigo. Sempre e se sobrevivi foi por causa dela. Mas durou muito, prolongou-se por muitos anos e só mais de uma década depois encontrei a normalidade. Mais até, pois a depressão ia e vinha.
É assim que posso sinceramente dizer que pouco me lembro do que restou do terceiro ano e esqueci quase por completo o quarto. De alguma forma consegui fazer as cadeiras que tinha deixado para trás quando abandonei a arqueologia e todas as outras que já faziam parte do cardápio. Adorei estudar a Revolução Francesa, embora o professor fosse sofrível. História de Lisboa foi giro. Teoria da História foi um desastre e, uma vez mais, ficaram os episódios sem nexo. O exame de História Moderna em que o professor pede uma biografia de D. João III e que fui consultar à biblioteca durante a prova. Era absurdo, quem sabe uma biografia de memória. O recurso que uma colega apresentou e onde, sem o meu conhecimento, envolveu o meu nome por ter assistido a uma conversa (pública) que tive com o professor no final de uma aula. E mentiu, extrapolou, obrigou-me a fazer o que mais odeio, justificar perante alguém que até não apreciava a minha solidariedade.
O melhor de tudo foi a recensão crítica que apresentei numa cadeira de História Contemporânea da qual já não me recordo o nome. O professor intimidava-me, mas era bom. Muito bom. Na segunda aula diz-nos que teremos de apresentar um trabalho final, uma monografia ou uma recensão crítica e acrescentou o seguinte: não vos aconselho a fazer a recensão crítica. É escusado dizer que foi o que fiz, não é? E muito me orgulho. O meu ano foi todo baseado no romance Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, e foi sobre ele que fiz a recensão. O limite eram cinco páginas, quinze para quem optasse pela monografia, e foi o que fiz. Faltavam-me duas linhas. Chega ao dia da entrega dos trabalhos, toda a gente ultrapassou largamente os limites e o dito docente quando me entrega a recensão dá-me os parabéns e diz-me que até podia ter escrito um pouco mais. Passei-me, disse-lhe que só podia estar a brincar, se ele sequer imaginava o trabalho que me deu condensar tudo no limite que estabeleceu. Foi extraordinário e no fim até se justificou. Nem imaginam o significado disto na Universidade Clássica.
E assim chegou a licenciatura. O diploma está ainda por levantar, não fiz fitas algumas, benção, tunas ou praxes. Provavelmente perdi muito e hoje, mesmo sendo professor de História de Arte e outras coisas que por cá se ensinam, não sei muito bem o que ali fiz quatro anos. Devia ter ido para Artes, mas a verdade é que no 9º ano conseguiram desviar-me do meu percurso. Só o retomei com a fotografia, aos 35 anos de idade. Mas valeu a pena. De outra forma como poderia contar esta história.
Mais uma vez adorei ler-te! O meu companheiro estudou História na licenciatura e História Medieval no mestrado, mas não trabalha na área (trabalha numa empresa de cibersegurança, onde até eu própria já trabalhei, antes de voltar ao jornalismo). Acho que se ele tivesse tido acompanhamento, se soubesse que era uma coisa possível, tinha ido estudar jornalismo para ser jornalista de desporto. Agora acha que já é tarde demais. Talvez um dia tente. A minha mãe só foi para a universidade estava eu no primeiro ano de secundário. No meu primeiro ano de universidade, ela estava no primeiro do mestrado. Vamos sempre a tempo de sermos quem quisermos!